quinta-feira, 30 de julho de 2015

Em Quintana, a descoberta da poesia

Elisa Kopplin Ferraretto

A capa colada com fita adesiva denuncia, mais do que a idade do livro, o seu intenso manuseio. Foi em 1976 que ganhei a antologia "Poesias", de Mario Quintana, no qual a Editora Globo reuniu, em 1975, os livros "A Rua dos Cataventos", "Canções", "Sapato Florido", "Espelho Mágico" e "O Aprendiz de Feiticeiro". Não tenho certeza se o presente foi de minha mãe, Miriam Kopplin, ou de minha tia Jane Beatriz Haas, que me levou à Feira do Livro de Porto Alegre. Mas o certo é que foi minha porta de entrada no mundo da poesia.

  

Voltei a folhear a obra hoje, 30 de julho de 2015, data do 109° aniversário de nascimento do poeta, e reli os dois poemas que mais me impressionaram lá nos meus oito anos.

Envelhecer
Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.

Velha história
Era uma vez um homem que estava pescando, Maria. Até que apanhou um peixinho! Mas o peixinho era tão pequenininho e inocente, e tinha um azulado tão indescritível nas escamas, que o homem ficou com pena. E retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do coitadinho. Depois guardou-o no bolso traseiro das calças, para que o animalzinho sarasse no quentinho. E desde então ficaram inseparáveis. Aonde o homem ia, o peixinho o acompanhava, a trote, que nem um cachorrinho. Pelas calçadas. Pelos elevadores. Pelos cafés. Como era tocante vê-los no "17"!... - o homem, grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara de fumegante moca, com a outra lendo o jornal, com a outra fumando, com a outra cuidando o peixinho, enquanto este, silencioso e levemente melancólico, tomava laranjada por um canudinho especial...
Ora, um dia o homem e o peixinho passeavam à margem do rio onde o segundo dos dois fora pescado. E eis que os olhos do primeiro se encheram de lágrimas. E disse o homem ao peixinho:
"Não, não me assiste o direito de te guardar comigo. Por que roubar-te por mais tempo ao carinho do teu pai, da tua mãe, dos teus irmãozinhos, da tua tia solteira? Não, não e não! Volta para o seio da tua família. E viva eu cá na terra sempre triste!...
"Dito isto, verteu copioso pranto e, desviando o rosto, atirou o peixinho nágua. E a água fez um redemoinho, que foi depois serenando, serenando...até que o peixinho morreu afogado..

Estas palavras me enfeitiçavam. Fantasmas, um peixinho a trote pelas calçadas, um homem de muitas mãos... Reli-as centenas de vezes, procurando, na minha ingenuidade infantil, compreender os segredos que os versos ao mesmo tempo escondiam e revelavam sobre a vida e a morte, a amizade e a solidão, o fim da juventude e a dificuldade de tomar decisões na idade adulta...

Descobri, assim, que poesia é magia. "Ser poeta é saber ver o mundo como o veem os anjos, as fadas, e ao mesmo tempo possuir o dom de comunicar a quem lê o que ele vê e sente, em resumo, é ter olhos para revelar a face secreta das pessoas e das coisas. [...] Quintana é também um mágico, só que suas mágicas são feitas com palavras", esclareceu o mago da prosa Erico Verissimo, no prefácio de outro livro de Mario Quintana, editado igualmente em 1975 pela Garatuja. "Pé de Pilão" foi escrito especialmente para crianças, com ilustrações de Edgar Koetz. Li e reli este delicioso livrinho até a exaustão, e ainda hoje lembro de cabeça os sonoros versos iniciais, que estão gravados também em um velho elepê (este comprado em um sebo já na idade adulta).





Há uns anos, o Luiz apareceu com um áudio do programa "Discorama", da Guaíba, no dia do lançamento de "Pé de Pilão".


Desde 1994, quando Quintana se foi, é um dos fantasmas para quem adoro servir um chazinho de vez em quando.

2 comentários:

  1. Pé de pilão é a grande lembrança literária da minha infância. Não foi a primeira nem a última obra lida ao pé da minha cama por minha mãe, mas lembro até hoje de maneira que ela, professora alfabetizadora, de português e literatura anunciou o presente que me dava a reciou a inverossímil e encantadora história em verão. Foi talvez o fato fundador do meu hábito de leitura.

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    1. Bela lembrança, Lúcio. Agradecemos o compartilhamento com a gente e com os leitores do blog. Suscitar este tipo de memória é o objetivo da gente.

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